Qual é o SUS que enxergamos?
Acostumamo-nos a ouvir a frase (e eu sou um dos que já a repeti várias vezes): “no dia em que a Classe Média utilizar o SUS, o serviço vai melhorar”. Tem até certa lógica, pois a Classe Média sempre foi formadora de opinião neste país, e a herança cultural dela nos permite inferir que ela ao menos é mais politizada.
Só que este argumento é falso. Duplamente falso. Primeiro porque a Classe Média já utiliza o SUS, cotidianamente. Segundo porque a Classe Média é formada pela opinião da mídia, seja ela marrom, vermelha, verde ou azul, para só então formar a sua opinião.
A Classe Média pode tentar se gabar de não utilizar o SUS “porque tem Plano de Saúde”. Só se esquece que come, compra remédios, vive em sociedade e se beneficia de pesquisas de laboratórios voltados para problemas de saúde pública (e não para problemas que darão retorno financeiro). Além disto, por mais que tenhamos dificuldades no controle de endemias, ela se beneficia do combate às zoonoses. Em outras palavras: se ela come, está usando a ANVISA (Agência de Vigilância Sanitária). Se ela compra remédios, também. Se ela hoje não está em meio a diversas epidemias, é porque existe a Vigilância Epidemiológica. Se ela tem tratamento para doenças negligenciadas, como tuberculose, hanseníase, leishmaniose, isto se deve a laboratórios de pesquisa, como os diversos laboratórios da Fiocruz e de vários outros. 1
Tudo bem, ela utiliza estes serviços, mas ainda poderia dizer que não usa o serviço assistencial do SUS. Outro engano. Podemos simplesmente citar o exemplo das vacinas, que são dadas gratuitamente em Unidades de Saúde por todo o país, consumidas e reconhecidas por todos como de alta eficácia (superior a das vacinas da rede privada) e qualidade. Ou podemos lembrar que, além de usufruir da ANVISA (sem saber ou lembrar), hoje há um programa de distribuição gratuita de medicamentos tanto nas Unidades do SUS quanto na rede privada (em outro momento podemos discutir a Farmácia Popular sob a ótica do uso da verba do SUS voltado para grandes empresas de comércio farmacêutico). Ainda assim algumas pessoas não estariam suficientemente convencidas.
Podemos até lembrar que pacientes HIV positivos (bem como pessoas vivendo com várias outras doenças), recebem gratuitamente medicamentos produzidos no país, ou subsidiados pelo governo. Ou que os planos de saúde despejam a conta do alto custo (e seus respectivos pacientes) no setor público do SUS. E até mesmo entrar na polêmica da judicialização da medicina, onde o direito médico consegue tratamentos gratuitos para pacientes.
Finalmente, podemos lembrar que, por estarmos dentro de um Sistema Único, tudo o que é gasto em saúde se traduz em abatimento no Imposto de Renda, integralmente. Ou seja, o que se gasta na sessão suplementar do SUS é devolvido ao cidadão depois de um ano, dinheiro este que poderia estar subsidiando a porção pública do sistema. Para isto, basta lembrar que na educação não há desconto integral, pois não há um Sistema Único de Educação (se existisse, as caras escolas e faculdades pagas pela Classe Média seriam também “descontáveis” integralmente). O desconto é restrito a cerca de R$3.000 por dependente.
Posto isto, a avaliação da satisfação do brasileiro com seu sistema de saúde é pauta recente na mídia e nos órgãos de discussão em saúde pública. E demonstrou alguns pontos que merecem destaque.
Depois que uma pesquisa apontou a saúde como o principal desafio do governo Dilma2, e depois que ela mesma incluiu a Saúde como meta principal, junto à erradicação da miséria, a Saúde ampliou seus holofotes. Não que já não existissem, pois costumo ponderar que Saúde sempre será o carro chefe da oposição em qualquer governo, pois sempre há mais o que fazer para melhorá-la (ou... lei do saco sem fundo).
Na Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade um estudo sobre satisfação do usuário3,4 conduzida Porto Alegre-RS, comparou a satisfação de usuários de acordo com a qualidade da atenção recebida (alto escore de APS vs. baixo escore de APS) utilizando o Instrumento de Avaliação da Atenção Primária (PCATool), e um questionário referente à última consulta. Observou-se diferença significativa nas 12 variáveis que refletem a satisfação em vários aspectos da consulta, demonstrando maior satisfação em usuários que classificaram o seu serviço como de alto escore para APS, com 95,6% e 73,5% de "satisfeitos" nos serviços com alto e baixo escore de APS, respectivamente (p<0,001).
A pesquisa de janeiro do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA)5,6 gerou grandes discussões sobre o tema. Em linhas gerais, ela demonstrou mais de 80% de satisfação com a Estratégia Saúde da Família. E apontou um dado importantíssimo: quem utilizou assistencialmente a porção pública do SUS nos 12 meses que antecederam a pesquisa o avaliou melhor do que aqueles que não o utilizaram, ainda que no geral as avaliações tenham se situado em sua maioria na linha do regular.
Recentemente foi publicizada uma pesquisa do Observatório de Recursos Humanos em Saúde da UFMG7 que monitorizou resultados, desempenho e satisfação dos usuários da atenção primária em Belo Horizonte, e apresentou a percepção dos usuários sobre o serviço disponibilizado pela Unidade Básica e seus profissionais, de acordo com seis dos sete atributos básicos da Atenção Primária6. Foram avaliadas todas as 512 equipes da rede belorizontina e os resultados apontaram os seguintes índices de satisfação para os seis componentes: 86,60% para integralidade da atenção, 86,04% para a orientação voltada para a comunidade, 84,94% para acessibilidade/ primeiro contato, 78,14% para atuação com foco na Família, 75,22% para a longitudinalidade/ horizontalidade da atenção e 61,48% para a coordenação do cuidado.
Portanto, em linhas gerais, podemos observar níveis que variam de 61% a 95% de satisfação com a saúde oferecida especialmente pelos serviços de Atenção Primária com organização voltada para a satisfação dos princípios da Atenção Primária (leia-se: os 51% de assistência da Estratégia Saúde da Família), e a maior percepção de qualidade de quem utiliza com freqüência os serviços públicos assistenciais do SUS em relação a quem acha que não usa (leia-se Classe Média).
Atendi nesta noite 12 pacientes pediátricos do SUS em um plantão na região metropolitana de Belo Horizonte e posso afirmar que todos saíram com um sorriso no rosto maior do que habitualmente encontro nos plantões da rede suplementar de saúde. Teorias conspiratórias a parte, resta saber a quem interessa manter a pecha de que o sistema público de saúde é pior que o sistema suplementar.
1. De Lavor, A; Dominguez, B; Machado, K. O SUS que não se vê. Radis 104, Abr 2011. P. 9-17. Disponível em http://www4.ensp.fiocruz.br/radis/104/sumario.html (veja na íntegra abaixo)
2. Savassi, LCM. O programa da Vênus e a caça ao SUS. [Blog Saúde com Dilma]Disponível em http://saudedilma.wordpress.com/2011/04/09/g-e-a-caca-ao-sus/
3. Zils, AA; Castro, RCL; Oliveir, MMCO; Harzheim, E; Duncan, BB.Satisfação dos usuários da rede de Atenção Primária de Porto Alegre. RBMFC v. 4, n. 16 (2009). P. 270-6. Disponível em http://www.rbmfc.org.br/index.php/rbmfc/article/view/233
4. Savassi, LCM. A satisfação do usuário e a autopercepção da saúde em atenção primária RBMFC, v. 5, n. 17, (2010) p. 3-5. Disponível em: http://www.rbmfc.org.br/index.php/rbmfc/article/view/135
5. IPEA. Sistema de Indicadores de Percepção Social Saúde. Brasília: IPEA2011. 20 p. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/SIPS/110207_sipssaude.pdf
6. Savassi, LCM. Estratégia Saúde da Família é aprovada por 80% dos usuários do SUS. [Blog Saúde com Dilma] Disponível em http://saudedilma.wordpress.com/2011/02/09/estrategia-saude-da-familia-e-aprovada-por-80-dos-usuarios-do-sus/
7. Observatório de Recursos Humanos em Saúde, FACE/UFMG. Saúde da Família – Desafios e Perspectivas a partir da Experiência de Belo Horizonte. Auditório do BDMG, 08 de abril de 2011. Disponível em: http://www.rededepesquisaaps.org.br/UserFiles/File/estudoBh.pdf
8. Starfield, B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: UNESCO, Ministério da Saúde, 2002. 726p. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ue000039.pdf
Nenhum comentário:
Postar um comentário