Medicina de família no Brasil
Ainda é necessário estimular a atenção primária
Por: Airton Tetelbom Stein
Professor de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Ciências de Saúde de Porto Alegre (Ufcspa), professor da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra) e coordenador de Avaliação de Tecnologia em Saúde do Grupo Hospitalar Conceição (GHC)
Gustavo Gusso
Presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade
Em 1990, o Sistema Único de Saúde (SUS) foi implementado, caracterizando-se como um grande avanço no sistema público no Brasil. Em 1988, uma reforma constitucional definiu o sistema com um conceito de saúde abrangente e inclui os seguintes princípios: acesso universal, equidade, descentralização, regionalização, hierarquia dos serviços de saúde e participação social. Nesse contexto, a saúde é vista como um direito do cidadão e um dever do Estado. Em 2006, o país gastava 7,5% do total do PIB em saúde (3,5% público e 4% privado), mas existe uma distribuição desigual na alocação de recursos nesse setor saúde.1
A equidade é um princípio de justiça social que tem por objeivo diminuir a distribuição desigual dos serviços de saúde no país, levando em consideração as diferentes necessidades da população. Os médicos têm de lidar com os aspectos éticos, os quais levam a uma abordagem mais centrada no paciente.
Uma publicação da Organização Mundial de Saúde (OMS) intitulada “Atenção primária em saúde: agora mais do que nunca” afirma que a fonte do problema é que o sistema de saúde e a agenda nessa área têm focado os serviços curativos.2
De acordo com o Ministério da Saúde, existem 30.000 equipes de atenção primária, as quais cobrem 97 milhões de pessoas em todo o país e integram a chamada Estratégia de Saúde da Família (ESF).3,4 A ESF tem uma ênfase na comunidade e valoriza a competência cultural para identificar e solucionar a maior parte das necessidades em termos de saúde.
A equipe multidisciplinar da ESF consiste de um médico, uma enfermeira, uma técnica de enfermagem e vários agentes comunitários que são responsáveis por 2.400 a 4.000 pessoas em uma área geográfica definida.5
A ESF é uma boa oportunidade para iniciar a mudar o sistema de saúde com o foco na atenção primária em saúde. A tarefa principal desses profissionais é promover a qualidade de vida e contribuir para diminuir a iniquidade que ocorre em um país como o Brasil.
Estima-se que 75% da população brasileira dependem exclusivamente do SUS para ter acesso a serviços de saúde. Além do atendimento básico, existe uma série de serviços hospitalares que estão disponíveis, tais como cirurgia cardíaca e recursos diagnósticos e terapêuticos sofisticados. Existe a necessidade de maior aporte de recursos para o setor saúde, assim como estratégias para incentivar a atenção primária. Por exemplo, devem ser identificadas propostas efetivas para que o médico da ESF possa ter estabilidade em seu local de trabalho.
Atualmente, existe envolvimento dos governos para acelerar as ações em saúde relacionadas às Metas de Desenvolvimento do Milênio. Assim, é muito importante avaliar criticamente a experiência brasileira para identificar políticas de saúde e estratégias a fim de enfatizar o sistema de saúde e prestar intervenções efetivas.
Em um relatório recente, a OMS afirma que a atenção primária continua sendo a forma mais efetiva para prover um maior acesso a serviços de saúde, e essa estratégia é a chave para o sucesso do SUS.6
Uma das principais metas da ESF é diminuir a mortalidade infantil, e um estudo ecológico bem-delineado mostrou que essa estratégia impactou significativamente na redução na mortalidade relacionada à diarreia em crianças menores de 5 anos. De 1990 para 2002, em crianças nessa faixa etária, a mortalidade causada pela diarreia diminuiu de 12% para 5%.7
Desenvolvimento da medicina de família no Brasil
A história da medicina de família tem quatro fases. Antes da década de 1980, não era reconhecida como uma especialidade, e aqueles que não realizavam a sua atividade no hospital não tinham formação específica para exercer essa tarefa. A segunda fase iniciou após 1981, quando os programas de residência foram reconhecidos pelo governo federal e o nome da especialidade era, então, medicina geral e comunitária. A maioria dos programas de residência durante esse período enfatizava mais a abordagem individual do que a prática coletiva.
Um desses programas, o qual está ativo desde 1981, foi criado no Grupo Hospitalar Conceição (GHC) pelo Dr. Carlos Grossman e contou com um programa de cooperação através do Conselho Britânico. Vários colegas ingleses desenvolveram uma parceria de apoio para estimular a residência de medicina de família e o conceito de atenção primária. Nessa segunda fase, o médico geral e comunitário não tinha uma posição adequada no mercado e trabalhava em serviços estruturados. Muitas vezes, essa formação especializada não era valorizada.
A terceira fase foi implementada em 1994, quando a ESF3,4 teve início e essa especialidade foi identificada como fundamental para o recurso médico. Foi a primeira vez que a medicina de família teve a chance de desenvolver o seu campo como uma profissão. O quarto período iniciou em 2003, quando a Associação Médica Brasileira reconheceu-a como uma especialidade e mudou a denominação de medicina geral e comunidade para medicina de família e comunidade.
As etapas descritas sobrepõem-se, considerando que ainda hoje o número de médicos de família e comunidade treinados em um programa de residência não é suficiente para todas as posições disponíveis da ESF. Além disso, ainda existem muitos médicos que trabalham na atenção primária, mas não tiveram um treinamento adequado. Um dos principais problemas da ESF é o número elevado de profissionais que não permanecem na mesma posição por um longo período.
O número de programas de residência em medicina de família e comunidade aumentou de 8 em 1998 para 65 em 20098, o que indica uma tendência de aumento no número de médicos de atenção primária. A maior parte dos programas também inclui o treinamento de outros profissionais da saúde.
Há menos de 2.000 médicos de família e comunidade com residência ou com certificado dessa especialidade pela Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade de um total de 30 mil que estão trabalhando na ESF. O Ministério da Saúde fornece incentivos financeiros para os municípios que contratam esses especialistas como estratégia para estimular a formação.
Existem várias estratégias no país para aumentar a qualidade do padrão na atenção primária, como, por exemplo, o UNASUS (aprendizado a distância de atenção primária), o desenvolvimento de um site de pesquisa em atenção primária (www.rededepesquisaaps.org.br), o desenvolvimento de diretrizes clínicas especificamente para médicos de família e a organização de conferências em atenção primária.
Apesar das especificidades da história da medicina de família no Brasil, os assuntos mais relevantes estão de acordo com a literatura europeia e americana. Alguns dos autores que influenciam os programas de residência de medicina de família e comunidade no Brasil são Barbara Starfield9, Ian McWhinney10 e John Fry,11 havendo documentos relevantes na formação para especialistas dessa área.12,13
O Brasil prepara-se para adotar políticas que serão conduzidas pela nova presidente da república, e a melhora da qualidade do serviço de saúde consta na agenda de discussões. De acordo com um artigo publicado na Folha de São Paulo, o foco durante a campanha à presidência enfatizava mais o atendimento de alta complexidade e o atendimento emergencial.14 No entanto, existe uma necessidade de estimular a atenção primária, como foi previsto em um editorial publicado no BMJ em 1995.15
Referência:
1.Machado CV. Health priorities in Brazil in the 1990s: three policies, many lessons. Rev Panam Salud Publica 2006;20:44-49.
2.World Health Organization. The world health report 2008: primary health care now more than ever. 1. World health – trends. 2. Primary health care – trends. 3. Delivery of health care. 4. Health policy.
3.Brasil, Ministério da Saúde. Programa de Saúde da Família: saúde dentro de casa. Brasília: Ministério da Saúde/Fundação Nacional de Saúde, 1994.
4.Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde, 2006.
5.Magalhães R, Senna M. Local implementation of the Family Health Program in Brazil. Cad Saúde Pública. 2006;22:2549-59.
6.News. Flawed but fair: Brazil´s health system reaches out to the poor. Bulletin of the World Health Organization. April 2008, 86(4).
7.Macinko J, Guanais FC, de Fátima M, de Souza M. Evaluation of the impact of the Family Health Program on infant mortality in Brazil, 1990-2002. J Epidemiol Community Health. 2006;60:13-9.
8.MEC [homepage on the internet] Ministério da Educação [cited 2010 Sep 20]. Available from: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12263&Itemid=506
9.Starfield B. Primary care: balancing health needs, services, and technology. New York: Oxford University Press, 1998.
10.McWhinney IR. A textbook of family medicine. 2nd edition. New York: Oxford University Press, 1997.
11.Fry J. A new approach to medicine. Lancaster: MTP Press Limited, 1978.
12.Wonca Europe (The European Society of General Practice/ Family Medicine). The European Definition of General Practice/Family Medicine. 2nd edition, 2005.
13.Royal College of General Practitioners. Good Medical Practice for General Practitioners. Royal College of General Practitioners, 2002.
14.Folha de São Paulo. Foco da saúde está errado, dizem médicos. Edição de 19 de setembro de 2010, p. 9, Eleições 2010.
15.Haines A, Wartchow E, Stein A, Dourado EM, Pollock J, Stilwell B. Primary care at last for Brazil? BMJ 1995;310:1346.
Publicado originalmente em : http://www.bmjbrasil.com.br/MateriaDetalhe.aspx?MateriaID=bfd85f8b-b6df-4f91-aea9-039cfa9daddc&TipoMateria=3&EdicaoID=b4622801-add5-4c16-941f-1fd273130852&SecaoID=186b04e8-60fe-4d5f-bc16-069073b5f5c2
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