segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

ANS e os 7 dias... não bastava o gatekeeper e remuneração digna?

Mais uma lei "que não vai pegar"? Ou o início do fim da saúde suplementar?

A imprensa divulga a nova legislação que incidirá sobre planos de saúde e determinará um prazo máximo de 7 dias entre marcação e consulta para especialidades como pediatria, gineco-obstetrícia, e medicina interna, e de 14 dias para outras especialidades.

Em linhas gerais, a ANS prevê:
1) o cumprimento de prazos máximos para atendimento aos beneficiários, com consultas básicas, exames e internações;
2) a obrigatoriedade de existência de prestadores de serviços de saúde (hospitais, clínicas, laboratórios e médicos) em todos os municípios da área de abrangência do plano;

Se não houver prestador de saúde credenciado no município, a operadora deverá:
* garantir o atendimento em prestador não credenciado no mesmo município; ou
* garantir o transporte do beneficiário até o prestador credenciado para o atendimento, assim como seu retorno à localidade de origem; ou
* reembolsar, integralmente, o custo pago pelo beneficiário pelo serviço ou procedimento realizado.

A determinação surgiu a partir do enorme número de reclamações quanto ao tempo necessário para consultas, que chegam a demorar até um mês para o pediatra e três meses ou mais para algumas especialidades. Mas porque chegamos a este ponto?

1) Porque a Medicina Suplementar tem filas de espera semelhantes ao sistema público?

Em primeiro lugar, é importante destacar que o SUS funciona com cerca de R$60,00/habitante/mês, enquanto os planos de saúde funcionam com 3 a 10 vezes mais. Se você pagasse R$60,00 pelo seu plano de saúde, certamente não teria direito a um décimo do que o SUS oferece.

É igualmente importante lembrar que o governo usa dinheiro que deveria ir para o SUS para financiar a saúde suplementar, de duas formas:
A) Paga a ela por exames e procedimentos que não existem no SUS e assume pacientes que os convênios não conseguem sustentar e
B) isenta todo e qualquer gasto com saúde, ou seja, deixa de arrecadar no imposto de renda integralmente o seu gasto com saúde.

Posto isto, o plano de saúde atualmente faz mal para o médico, ainda que este plano seja uma cooperativa. O valor de uma consulta é cada vez menor frente ao salário mínimo, o salário médico não está vinculado ao mínimo, e os custos de sua clínica, secretária, secretária doméstica, porteiro, sim.

A consulta médica se desvalorizou frente ao mínimo, frente ao dólar, frente ao próprio real, pois é reajustada abaixo do valor da inflação e ficou congelada por 10 anos. A lógica para o médico é simples: com o aviltamento do valor pago por consultas, ocorreu o progressivo abandono do convênio como fonte de renda.

Hoje um médico tem duas agendas: a do cliente particular e a do cliente de convênio. Em vários casos, o médico sequer dá o número do celular para o paciente de convênio. Isto porque a remuneração em consultórios varia de R$20,00 a R$60,00 por consulta, sendo que a maioria dos convênios paga menos de R$42,00 a consulta, valor proposto na CBHPM há cinco anos como o mínimo.

2) Mas porque os convênios pagam tão pouco?

Não, os convênios não são meros canalhas odiosos que exploram médicos. Eles também estão apertados e há várias explicações para isto, duas das quais soam mais importantes.

Em primeiro lugar, saúde é "saco sem fundo", ou seja, não há investimento em saúde suficiente para responder a todas as demandas de um paciente. Sabe-se ainda que a demanda em saúde se regula pela oferta (em outras palavras, "se há um serviço, será consumido", e um novo pronto-atendimento atingirá seu limite de atendimento em uma questão de dias).

As tecnologias em saúde, além disto, são somativas: não se deixou de fazer a consulta do paciente com o advento do Raio X, não se deixou de pedir Raio X na consulta com o advento da tomografia, e não se deixou de consultar, pedir Raio X e Tomografia com o advento da Cintilografia, ou da Ressonância. Enfim, saúde é caro, o gasto só aumenta, e a margem de lucro de todos (planos, hospitais, médicos) está caindo.

Em segundo lugar, em um sistema de saúde voltado para cuidar da doença e regulado por interesses pessoais e comerciais na doença, a necessidade do usuário nunca será o objetivo principal; no máximo o desejo do paciente será levado em conta. Lembrando que desejo é diferente de necessidade (desejo, necessidade, vontade).

Falta promover saúde de uma maneira racional, assim como falta prevenção baseada em evidências (e não em procedimentos que especialistas defendem para reduzir seu prejuízo). Falta promover o acesso ao cuidado racionalmente, utilizando para isto um gatekeeper, ("porteiro"), preferencialmente aquele que foi formado no âmbito comunitário, ou seja, na atenção primária: o Médico de Família e Comunidade (MFC, ou simplesmente médico de família).

Caberá ao médico de família orientar e tratar a maioria das dores nas costas, e compartilhar algumas poucas para o fisioterapêuta, ao invés do paciente procurar livremente o especialista (que fará exames de imagem e sangue desnecessários, ou até potencialmente nocivos, pois naturalmente deverá descartar qualquer causa de sua área para a dor). Ao estabelecer o cuidado ao longo do tempo, ele também saberá quais sintomas são novos e relevantes e quais realmente importam, ao invés de ficar brincando de classificar pacientes em blocos de doenças; e ao coordenar o cuidado, mesmo aqueles pacientes que necessitaram do especialista terão o acompanhamento e orientação do médico que já os conhece.

3) Mas essa é uma idéia brilhante! Porque vocês não tiveram ela antes?

Dizem que na política e na arte, "nada se cria, tudo se copia". Ninguém está inventando a roda.



Esta é uma solução simples que um país destruído por uma guerra e quase falido adotou na década de 40; que foi adotado em outros países ao longo das décadas seguintes; que foi proposto para o mundo todo em 1977. E que o SUS (nascido onze anos depois), só começou a trabalhar em 1994.

Este modelo de atenção começou há 17 anos no Brasil, e apenas em 2010 atingiu metade da população, infelizmente via de regra os 50% mais pobres, o que dá margem aos inimigos da saúde pública dizerem que a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o SUS são um um modelo de saúde para os pobres. A classe média ainda utiliza pouco a assistência pública, incluindo a ESF, e desconhece os verdadeiros problemas do SUS (que são bem diferentes daqueles que o Datena, o Casoy e o casal 20 dizem existir).

4) Porque quem tem plano de saúde não tem direito ao um médico de família, só no SUS?

Porque a Unimed, a Amil e os planos de saúde seguem a lógica de mercado dos Estados Unidos, de venda de seguros saúde. Isso é um pouco mais complicado que parece, e sugiro que assistam SICKO de Michael Moore para entender como funciona lá e imaginar como tentam diariamente nos rebaixar a qualidade da saúde estadunidense desconstruindo o SUS.

A conta é simples: se médicos de família resolvem de 85 a 95% dos problemas de saúde da uma população dentro do consultório, com poucos ou nenhum exame, os especialistas/ hospitais/ clínicas de exames ficam com a fatia de 5% de pacientes, mesmo assim compartilhados e coordenados pelos médicos de família.

Problemas não faltam: os MFCs começam a ser formados novamente no Brasil há menos de 10 anos, bem depois do mercado de trabalho estabelecido, e estão longe da graduação nas faculdades tradicionais e seus currículos ultrapassados. O mercado de trabalho é enorme na rede pública (32.000 equipes no Brasil) e mesmo ele não valoriza ainda o título. Para fazer partos, você precisa ser obstetra, mas para atender atenção primária, "qualquer um serve". Faltam profissionais, a grande parte da população não os conhece, e mesmo uma boa parte da classe médica os desconhece, ou faz questão de evitar.

E é claro que muitos interesses permeiam esta relação:
- o interesse coorporativo de sociedadades de especialistas que não desejam ver seus pacientes atendidos por um médico de família;
- interesse de empresas de exames que não querem ver seus lucros reduzidos pelo questionamento de diretrizes não baseadas em evidências;
- interesse da indústria farmacêutica e suas relações com sociedades de especialidades/ hospitais/ farmácias, para quem um médico baseado em evidências e centrado no paciente será menos intervencionistas, e menos lucrativo;
- medo de uma indústria da doença, para quem a prevenção não interessa;
- receio de um grande sistema suplementar que não deseja perder mercado para uma medicina humanista e pouco baseada em tecnologia.

5) Para resumir:

- Medicina é cara, e o custo aumentará sempre.
- Medicina é saco sem fundo, não há investimento que resolva 100% dos problemas de saúde.
- Medicina é arte e humanismo, mas o mercado não deixa isto se dar da melhor maneira.
- Há algumas soluções para reduzir o custo e melhorar a relação médico-paciente.
- Mas estas soluções desagradam muita gente.

6) E o que será dos planos de saúde e de seus usuários daqui por diante?

Não há respostas, e sim dúvidas. Algumas perguntas são:

1) Qual mecanismo irá obrigar um pediatra ou clínico, que já ganha um valor irrisório, com taxas de "glosas" (nome técnico para quando o convênio "dá o cano" no profissional), a abrir horários na agenda para salvar os planos de saúde de multas?

2) Os convênios pagarão o valor de uma consulta particular a estes profissionais? Ou reembolsarão os usuários de planos de saúde que pagam a consulta particular? Neste caso, não seria melhor descredenciar todo mundo e pagar a consulta particular e deixar somente exames e internações por conta dos convênios?

3) Os convênios, cooperativas e grupos tem alguma previsão de trabalhar com racionalização de recursos, ou continuarão a fazer o pêndulo, aviltando o médico e cobrando mais do usuário?

4) Os planos de saúde sobreviverão ao crescimento e consolidação do SUS?

5) Será uma lei que "não vai pegar"? Ou estamos fadados a ver o fim da saúde suplementar, que desde a década de 70 é acusada pelas coorporações de explorar a classe médica?

6) E, para os usuários de planos de saúde: porque não pagar por uma consulta particular, que custa o mesmo que uma boa ida ao cabelereiro, ou ao preço de um conserto de privada na sua casa, e deixar o plano de saúde para os gastos com exames e hospitais? Porque trocar um profissional que te conhece por um pronto-socorro lotado com uma consulta expressa, impessoal e pouco resolutiva?

(Racionalmente: Uma consulta particular em pediatra custa R$150,00, e os controles a partir do segundo ano podem ser semestrais. Você terá um profissional a sua disposição, com número de celular, e agenda tranquila, quando for necessário. Quanto você gastou com cabelereiros em 2010?)

Por fim, não podemos deixar de dizer: pobre classe média, que não tem direito a um médico de família... passará ainda uns bons anos a mercê da iatrogenia e da impessoalidade da relação médico-paciente.


Leonardo C M Savassi

Médico de Família e Comunidade e Pediatra
Professor da Universidade Federal de Ouro Preto
Presidente da Associação Médica de Betim


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Uma postagem ácida sobre a ANS foi feita pelo Prof. Ricardo Menezes.

Conflitos de interesse: Nenhum declarado. Leonardo Cançado Monteiro Savassi é professor universitário de Medicina de Família e Comunidade da UFOP, Pediatra da Unimed Betim, não tem consultório particular, atua em pronto-atendimento, e nunca foi patrocinado pela indústria farmacêutica em suas palestras e pesquisas.

Publicado originalmente em http://medicinadefamiliabr.blogspot.com
(permitida livre distribuição, desde que citada e linkada a fonte)

Um comentário:

  1. Excelente post, realmente o preço de uma consulta médica é uma vergonha, pena que a maioria da população não saiba disso e agora os planos serão obrigados a credenciar mais médicos, com isso é a hora de todos renegociarem os valores da consulta. Vou citá-lo em breve no meu blog. Abç

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