domingo, 20 de março de 2011

Brasil x Espanha



Poderia ser uma grande partida de futebol, mas trata-se apenas de alguns comentários sobre a Saúde de cada país. É importante entendermos como diferentes nações organizam seus sistemas de saúde públicos (em especial a Atenção Primária, nosso maior interesse aqui) para tirarmos exemplos do que funciona ou não, e assim continuarmos evoluindo na construção de um modelo que possa atender às necessidades da população brasileira.



Introdução


A Constituição espanhola de 1978 - mesmo ano da Conferência de Alma Ata – estabelece, no artigo 43º, o direito à proteção da saúde e assistência médica para todos os cidadãos. Os princípios e critérios que permitem o exercício desse direito são:


• O financiamento público, a cobertura universal e serviços de saúde gratuitos .

• Direitos e responsabilidades definidas para os cidadãos e autoridades públicas.

• A descentralização da política de saúde nas regiões.

• Prestação de assistência integral à saúde em busca de padrões elevados devidamente avaliados e controlados.

• Integração de diferentes estruturas e serviços públicos.


À primeira vista, se parece muitíssimo com os princípios norteadores do SUS. Entretanto, existem algumas diferença importantes. Mencionarei algumas delas.




Financiamento


O governo da Espanha gastou com saúde em 2007 menos que a média européia: cerca de 6% de seu PIB, ou seja, mais ou menos R$ 284,00/mês per capita. No Brasil, o governo gastou 4% do seu PIB no ano de 2009 – o que representa pouco mais de R$ 60,00 mensais.


A despesa pública de saúde na Espanha é dividida da seguinte forma: 54% corresponde a atendimento especializado (hospitalar e ambulatorial), 16% para a atenção primária, 19,8% representam gastos com produtos farmacêuticos e 1,4% são destinados para a saúde pública e prevenção.


As comunidades autônomas administram 89,91% do total de recursos públicos destinados à saúde. De fato, esta é a maior atribuição da mesmas, que gastam 30% do seu orçamento com o setor. Os recursos provêm dos impostos recolhidos em seu território, porém a União destina vários fundos especiais para cobrir as necessidades estimadas em cada comunidade autónoma para compensar necessidades de investimento diferenciadas e combater as desigualdades entre as regiões. A fórmula utilizada para a repartição dos recursos é baseada em um critério per capita, que leva em consideração a estrutura populacional, a dispersão da população e a extensão territorial.



Descentralização


Uma diferença marcante é que na Espanha as comunidades autônomas gozam de maior independência quando comparadas aos estados brasileiros – e todos os aspectos. De fato, cada uma delas possui um Serviço de Saúde próprio, com um sistema de gestão que integra todos os órgãos prestadores de serviços em saúde, sejam eles municipais, regionais ou comunitários. Legalmente, cabe a cada comunidade autônoma: planejar, prover e gerir a saúde pública em seu território. A esfera federal encarrega-se de realizar a coordenação geral de temas sanitários, dos acordos internacionais de saúde, e da legislação sobre produtos farmacêuticos.


A progressiva transferência de competências para os governos regionais observada na última década corresponde ao objetivo de aproximar a gestão das necessidades e da realidade de cada comunidade autônoma, com estímulo à participação popular – nos mesmos moldes dos nossos conselhos de saúde brasileiros.



O Acesso


O acesso ao sistema de saúde espanhol é universal e gratuito, exceto os medicamentos prescritos para menores de 65 anos, que devem arcar com 40% do preço de revenda dos mesmos. Este acesso é garantido mesmo para estrangeiros (em situação regular ou não) – que representam nada menos que 12% dos 46,6 milhões de habitantes do país.


Normalmente é exigido um único requisito para que se tenha acesso aos serviços públicos de saúde: a identificação de empadronamento (registro municipal administrativo de residência) – equivalente ao comprovante de residência solicitado nas UBS brasileiras para o cadastramento. Com o empadronamento, se pode ir ao Centro de Atenção Primária de referência da área onde se vive e solicitar a tarjeta sanitária - cartão de identificação do sistema de saúde.


Os Centros de Atenção Primária (CAP) obviamente atuam como portas de entrada do sistema e trabalham de maneira territorializada, e com população adscrita – com um média de 1410 pessoas/médico de família. As Equipes de Atenção Primária (EAP) são multidisciplinares, compostas por médicos de família, pediatras, enfermeiros, assistentes sociais e pessoal administrativo. Algumas contam também com fisioterapeutas e dentistas. Para se ter acesso à atenção especializada é necessário encaminhamento médico.



Aparentemente, o acesso à atenção primária se tornou tão fácil na Espanha que está se tornando um problema. Ainda não encontrei dados de fontes confiáveis, porém a queixa dos médicos que atuam na ponta é frequente e extremamente familiar: excesso de demanda, consultas muito rápidas, falta de tempo para atividades programadas de prevenção ou promoção de saúde, pressão por parte dos usuários por atendimento imediato, banalização do conceito de urgência, hiperutilizadores…


Um colega do mestrado se queixou comigo: “eu não aguento mais atender tantas consultas de demanda espontânea! São 20 ou 25 todos os dias… E sempre os mesmos pacientes!”. Então eu disse a ele que as nossas equipes têm de 2400 a 4000 pessoas cadastradas, frequententemente mais. Ele fez uma cara de espanto e não disse mais nada. Ficou pensativo como eu. Só que ele pensava no que havia de errado com a organização deles, enquanto eu pensava no que fazer agora - pois achava que a solução para muitos dos nossos problemas seria reduzir nossa população adscrita.



Comunicação e Educação em Saúde


Uma outra diferença que se percebe é o uso de meios diversos para contactar os usuários dos centros de saúde, informando-os sobre consultadas agendadas, atividades do CAP ou até mesmo educação em saúde. Cartas enviadas por correio, e-mails, SMS e contatos telefônicos são recursos utilizados rotineiramente.

Cartas são automaticamente enviadas a família com crianças, por exemplo, contendo avisos sobre calendário vacinal, alertas de riscos a que estão expostas ou simplesmente informações sobre crescimento e desenvolvimento das crianças. Portadores de doenças crônicas recebem material educativo, informes sobre atividades coletivas a serem realizadas.



Sistema de Saúde Suplementar


Planos de saúde privados têm um papel relativamente menor no sistema espanhol, mas cada vez mais importante. Atualmente, cobrem aproximadamente 13% da população (no Brasil, a cobertura privada é de 23,9%). Os usuários do sistema de saúde privado o utilizam frequentemente para obter acesso aos serviços para os quais existem listas de espera no sistema público, como consultas especializadas, ou para serviços como assistência odontológica adultos, para os quais o a carteira de serviços pública é muito limitada.



Grau de Satisfação dos Usuários


Na Espanha, 68% dos usuários do sistema público avaliam que este funciona bem. Já em relação ao SUS, apenas 28,9% dos entrevistados no Brasil avaliam positivamente os serviços públicos de saúde. Outros 42,6% dos brasileiros os consideram regular e 28,5% avaliam negativamente.



Conclusão


Resta saber se os brasileiros são mais exigentes ou pior assistidos. Porque a nossa superioridade em termos de futebol não se discute.





Fontes:


IPEA. Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS). Brasília: IPEA, 2011. 21 p.

Instituto de Direito Sanitário Aplicado

http://www.idisa.org.br/site/documento_2141_0__2010---27---532---estimativa-de-gasto-com-saude-no-brasil-em-2009.html

Sistema de Informações de Beneficiários/ANS/MS - 12/2010 e População - IBGE/Datasus/2010

http://www.ans.gov.br/index.php/materiais-para-pesquisas/perfil-do-setor/dados-gerais

García Armesto, S., Abadía Taira, B., Durán. A. y Bernal Delgado, E. España: Análisis del sistema sanitario. Sistemas sanitarios en transición. 2010; 12(4): 1–240

Sistemas Sanitarios en Transición. España: Análisis del Sistema ...

Sistema Nacional de Salud de España 2010 [monografia en Internet]. Madrid. Ministerio de Sanidad y Política Social, Instituto de Información Sanitaria. Disponible en: http://www.msps.es/organizacion/sns/librosSNS.htm.


Publicado por Gustavo Landsberg http://medicinadefamiliabr.blogspot.com

Um comentário:

  1. Gustavo,
    penso nessas dificuldades cronicas enfrentadas por cada especialidade: hiperutilizaçao, "vulgarizaçao" da urgencia etc, no caso da MFC e higienizacao de maos, uso racional de ATBs, dentre outras no caso da infecto hospitalar. No caso da infecto sao os mesmos problemas enfrentados no mundo todo.

    Será que estamos no caminho certo ou seria necessario rever todo o processo assistencial? O problema sempre aflora com o fator "humano", quando assiste ou é assistido, limitando o uso adequado dos recursos.

    Se o polvo ainda estivesse vivo poderiamos pergunta-lo qual a saída, já que atualmente nem no futebol podemos nos gabar dos espanhois...

    Grande abraço,
    Adelino Melo
    Infectologista

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