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Sempre que vamos falar de CIAP ou ICPC (leia-se aicipici), é inevitável citar também a CID, famosa Classificação Internacional de Doenças. Todo profissional da área da saúde que se preze e até mesmo o trabalhador que pede o atestado para sua M54.4 (dor lombar baixa) sabe do que se trata e para que serve.
Em qualquer lugar do mundo, este código alfanumérico com uma letra e dois (ou três) números representa as mesmas doenças.
Este fato é bastante útil, quando se leva em conta que existem 6.909 idiomas no mundo atualmente, que um dicionário médico pode ter mais de 8.500 vocábulos e que na última edição da Classificação Internacional de Doenças constam cerca de 12.000 códigos.
Pode-se então imaginar o desafio que é comunicar-se na área da saúde quando temos em conta que cada doença tem milhares de diferentes nomes em todo o mundo – e que podem existir ainda distintos conceitos e significados, permeados de aspectos culturais ou históricos que variam de região para região. Espinhela caída, caspa inflamada ou doença de cair podem causar dores no ouvido de um médico, porém podem ser termos perfeitamente compreensíveis em uma determinada comunidade.
Ou seja, a CID tem sua relevância e utilidade. É bom que seja uma classificação, pois separar cada coisa em seu lugar nos traz melhor organização e entendimento.
Bom também que seja internacional, pois padroniza e facilita a comunicação entre profissionais e pesquisadores de todo o mundo.
Mas porque apenas doença?
Claro, poderia-se argumentar que não há apenas doenças na CID. Há espaço para sintomas, como flatulência (R14). E para condições extremamente graves e frequentes, que representam séria ameaça à saúde, como a temida Z73.2 (falta de repouso e lazer).
A CID representa ainda situações bizarras e improváveis, como a V20 – “motociclista traumatizado em colisão com um pedestre ou um animal, condutor traumatizado em acidente não de trânsito”. É até um pouco difícil entender como um motociclista sofre um acidente que não seja de trânsito, ainda mais se no ocorrido está envolvido um animal.
De qualquer maneira, um dia alguém pode morrer desta causa, e há quem pense ser necessário codificar isso no atestado de óbito. Pois esta é a origem da CID: uma classificação criada para registrar causas de morte, surgida em 1893.
Esse exemplos nos mostram um pouco do que se tornou a CID ao longo do tempo: uma lista lista de doenças e outras coisas, todas colocadas em um mesma balaio, com o qual já não se sabe bem o que fazer. E que, em última análise, segue uma única lógica: a da doença.
Nós, médicos, em geral somos treinados durante os seis anos da faculdade (e outros mais de residência) para ouvir uma história, fazer um exame físico e realizar testes ou exames, de modo que ao final possamos transformar tudo isso numa doença. Chegar a um diagnóstico é percebido pelas pessoas como um sucesso. “Obrigado, doutor, pois você descobriu que tenho fibromialgia!”.
De maneira oposta, não poder estabelecer um diagnóstico representa o fracasso. “O doutor não conseguiu descobrir o que eu tinha e por isso falou que era uma virose”. Não importa que já passou e não sinta mais nada. O que importa é que ele não sabia qual era a doença.
Mas e daí? E a tal CIAP (Classificação Internacional de Atenção Primária)?
Primeiro, devemos levar em conta que a CIAP, apesar de ser fruto de mais de duas décadas de trabalho e discussões envolvendo grandes profissionais de todo o mundo, foi pensada para ser simples, prática e leve. Idealizada não para representar todos os problemas e doenças existentes, e sim aqueles que acontecem mais frequentemente no dia-a-dia. Tudo o que se observava mais do que uma vez a cada mil consultas/ano foi incluído.
Por isso a CID tem 2 Kg e a CIAP duas páginas.
Segundo, a CIAP é bem mais complexa em termos de informações que a CID, por mais incrível que possa parecer. Como foi dito, um código da CID serve para representar tão somente um diagnóstico, enquanto a CIAP representa sempre três coisas:
1. Motivo da consuta: as pessoas não procuram um profissional da saúde apenas por motivo de doença. Podem necessitar de um exame preventivo, de informações ou orientações, pode requerer um procedimento administrativo (com um atestado) ou apenas precisar desabafar sobre problemas conjugais.
2. Diagnóstico ou problema percebido pelo profissional: importante salientar que incluir o conceito de problema é algo incrível, que permite dar relevância a determinadas situações que são percebidas por aquele que presta os cuidados. Quando não se pode registrar um determinado problema, fica impossível depois abordá-lo. Com a CIAP, podemos codificar, por exemplo, medo de câncer, preocupação com a aparência, problemas com a vizinhança ou relacionados ao trabalho, problema conjugal, perda de familiar. Não são doenças, mas são fatores que definitivamente afetam a saúde, seja física ou mental, e que sem dúvida levam as pessoas a buscarem cuidados.
3. Intervenção ou procedimento: registra-se, finalmente, não apenas o que levou o paciente a consultar-se e o que de fato ele tinha, mas também o que foi feito em relação a isso.
Assim pode-se perceber que esse três campos representam muito melhor o encontro entre uma pessoa e um profissional de saúde do que simplesmente um rótulo que define uma doença.
O que devemos ter claro é que não se trata de uma competição, uma discussão sobre qual seria o sistema de classificação mais adequado ou completo – até porque, se levarmos ao pé da letra, a CID sequer pode ser considerada um sistema de classificação (mas felizmente não pretendemos entrar nesse assunto).
O que se deve perceber é a filosofia que há por trás dessas duas páginas simpáticas, coloridas e fáceis de entender.
A CIAP é a chave para se retirar a importância desproporcional dada às doenças e transferí-las às pessoas.
É uma maneira de aceitarmos os limites das nossas certezas.
Se como médicos somos forçados, em um contato pontual com um paciente, a estabelecer um diagnóstico e literalmente rotulá-lo com uma doença (atribuir um CID a cada consulta faz parte da nossa burocracia cotidiana), corremos o risco de sermos levianos ou precipitados, pois na maioria da vezes não é possível fazer isso.
Ainda, codificar o real motivo da consulta é um desafio para o profissional, pois este muitas vezes não está explícito. O sujeito que queixa dores no peito pode não estar incomodado com a dor, e sim com medo de ter um infarto, pois seu pai morreu disso.
Conhecer a verdadeira razão de uma pessoa buscar atendimento requer grande hablidade de comunicação. Por isso, utilizar a CIAP é um convite ao resgate de uma relação médico-paciente mais transparente, baseada na confiança e no entedimento mútuos.
Alguns poucos países já utilizam a CIAP rotineiramente. Muitos outros estão em vias de fazê-lo. O Brasil caminha nesse sentido, e tem avançado a passos largos.
A Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade adquiriu o direito de uso da CIAP, a traduziu, publicou e distribuiu o livro gratuitamente para médicos de família de todo o país. Está agora finalizando a tradução do primeiro prontuário eletrônico a ser usado no Brasil fundamentalmente estruturado nessa classificação. Vai ainda treinar profissionais para seu uso, objetivando a criação de uma rede nacional de pesquisadores.
No centro desses esforços não estão apenas números e letras, códigos e classificações. Encontram-se profissionais conscientes de algumas mudanças que se fazem necessárias para melhorarmos a organização dos serviços e elevarmos o nível dos cuidados prestados; médicos que zelam pela satisfação, pelo conforto e segurança de seus pacientes; pessoas simplesmente comprometidas com uma prática mais humana da medicina.
Publicado originalmente por Gustavo Landsberg em http://medicinadefamiliabr.blogspot.com