A
imprensa divulga a nova legislação que incidirá sobre planos de saúde e determinará um prazo máximo de 7 dias entre marcação e consulta para especialidades como pediatria, gineco-obstetrícia, e medicina interna, e de 14 dias para outras especialidades.
Em linhas gerais, a ANS prevê:
1) o cumprimento de prazos máximos para atendimento aos beneficiários, com consultas básicas, exames e internações;
2) a obrigatoriedade de existência de prestadores de serviços de saúde (hospitais, clínicas, laboratórios e médicos) em todos os municípios da área de abrangência do plano;
Se não houver prestador de saúde credenciado no município, a operadora deverá:
* garantir o atendimento em prestador não credenciado no mesmo município; ou
* garantir o transporte do beneficiário até o prestador credenciado para o atendimento, assim como seu retorno à localidade de origem; ou
* reembolsar, integralmente, o custo pago pelo beneficiário pelo serviço ou procedimento realizado.
A determinação surgiu a partir do enorme número de reclamações quanto ao tempo necessário para consultas, que chegam a demorar até um mês para o pediatra e três meses ou mais para algumas especialidades. Mas porque chegamos a este ponto?
1) Porque a Medicina Suplementar tem filas de espera semelhantes ao sistema público?
Em primeiro lugar, é importante destacar que
o SUS funciona com cerca de R$60,00/habitante/mês, enquanto os planos de saúde funcionam com 3 a 10 vezes mais. Se você pagasse R$60,00 pelo seu plano de saúde, certamente não teria direito a um décimo do que o SUS oferece.
É igualmente importante lembrar que o governo usa dinheiro que deveria ir para o SUS para financiar a saúde suplementar, de duas formas:
A) Paga a ela por exames e procedimentos que não existem no SUS e assume pacientes que os convênios não conseguem sustentar e
B) isenta todo e qualquer gasto com saúde, ou seja, deixa de arrecadar no imposto de renda integralmente o seu gasto com saúde.
Posto isto, o plano de saúde atualmente faz mal para o médico, ainda que este plano seja uma cooperativa. O valor de uma consulta é cada vez menor frente ao salário mínimo, o salário médico não está vinculado ao mínimo, e os custos de sua clínica, secretária, secretária doméstica, porteiro, sim.
A consulta médica se desvalorizou frente ao mínimo, frente ao dólar, frente ao próprio real, pois é reajustada abaixo do valor da inflação e ficou congelada por 10 anos. A lógica para o médico é simples: com o aviltamento do valor pago por consultas, ocorreu o progressivo abandono do convênio como fonte de renda.
Hoje um médico tem duas agendas: a do cliente particular e a do cliente de convênio. Em vários casos, o médico sequer dá o número do celular para o paciente de convênio. Isto porque a remuneração em consultórios varia de R$20,00 a R$60,00 por consulta, sendo que a maioria dos convênios paga menos de R$42,00 a consulta, valor proposto na CBHPM há cinco anos como o mínimo.
2) Mas porque os convênios pagam tão pouco?
Não, os convênios não são meros canalhas odiosos que exploram médicos. Eles também estão apertados e há várias explicações para isto, duas das quais soam mais importantes.
Em primeiro lugar, saúde é "saco sem fundo", ou seja, não há investimento em saúde suficiente para responder a todas as demandas de um paciente. Sabe-se ainda que a demanda em saúde se regula pela oferta (em outras palavras, "se há um serviço, será consumido", e um novo pronto-atendimento atingirá seu limite de atendimento em uma questão de dias).
As tecnologias em saúde, além disto, são somativas: não se deixou de fazer a consulta do paciente com o advento do Raio X, não se deixou de pedir Raio X na consulta com o advento da tomografia, e não se deixou de consultar, pedir Raio X e Tomografia com o advento da Cintilografia, ou da Ressonância. Enfim, saúde é caro, o gasto só aumenta, e a margem de lucro de todos (planos, hospitais, médicos) está caindo.
Em segundo lugar, em um sistema de saúde voltado para cuidar da doença e regulado por interesses pessoais e comerciais na doença, a necessidade do usuário nunca será o objetivo principal; no máximo o desejo do paciente será levado em conta. Lembrando que desejo é diferente de necessidade (
desejo, necessidade, vontade).
Falta promover saúde de uma maneira racional, assim como falta prevenção baseada em evidências (e não em procedimentos que especialistas defendem para reduzir seu prejuízo). Falta promover o acesso ao cuidado racionalmente, utilizando para isto um
gatekeeper, ("porteiro"), preferencialmente aquele que foi formado no âmbito comunitário, ou seja, na atenção primária: o Médico de Família e Comunidade (MFC, ou simplesmente médico de família).
Caberá ao médico de família orientar e tratar a maioria das dores nas costas, e compartilhar algumas poucas para o fisioterapêuta, ao invés do paciente procurar livremente o especialista (que fará exames de imagem e sangue desnecessários, ou até potencialmente nocivos, pois naturalmente deverá descartar qualquer causa de sua área para a dor). Ao estabelecer o cuidado ao longo do tempo, ele também saberá quais sintomas são novos e relevantes e quais realmente importam, ao invés de ficar brincando de classificar pacientes em blocos de doenças; e ao coordenar o cuidado, mesmo aqueles pacientes que necessitaram do especialista terão o acompanhamento e orientação do médico que já os conhece.
3) Mas essa é uma idéia brilhante! Porque vocês não tiveram ela antes?
Dizem que na política e na arte, "nada se cria, tudo se copia". Ninguém está inventando a roda.
Esta é uma solução simples que um
país destruído por uma guerra e quase falido adotou na década de 40; que foi adotado em outros países ao longo das décadas seguintes; que foi
proposto para o mundo todo em 1977. E que o SUS (nascido onze anos depois), só começou a trabalhar em 1994.
Este modelo de atenção começou há 17 anos no Brasil, e apenas em 2010 atingiu metade da população, infelizmente via de regra os 50% mais pobres, o que dá margem aos inimigos da saúde pública dizerem que a
Estratégia Saúde da Família (ESF) e o SUS são um um modelo de saúde para os pobres. A classe média ainda utiliza pouco a assistência pública, incluindo a ESF, e desconhece os verdadeiros problemas do SUS (que são bem diferentes daqueles que o Datena, o Casoy e o casal 20 dizem existir).
4) Porque quem tem plano de saúde não tem direito ao um médico de família, só no SUS?
Porque a Unimed, a Amil e os planos de saúde seguem a lógica de mercado dos Estados Unidos, de venda de seguros saúde. Isso é um pouco mais complicado que parece, e sugiro que assistam
SICKO de Michael Moore para entender como funciona lá e imaginar como tentam diariamente nos rebaixar a qualidade da saúde estadunidense desconstruindo o SUS.
A conta é simples: se médicos de família resolvem de 85 a 95% dos problemas de saúde da uma população dentro do consultório, com poucos ou nenhum exame, os especialistas/ hospitais/ clínicas de exames ficam com a fatia de 5% de pacientes, mesmo assim compartilhados e coordenados pelos médicos de família.
Problemas não faltam: os MFCs começam a ser formados novamente no Brasil há menos de 10 anos, bem depois do mercado de trabalho estabelecido, e estão longe da graduação nas faculdades tradicionais e seus currículos ultrapassados. O mercado de trabalho é enorme na rede pública (32.000 equipes no Brasil) e mesmo ele não valoriza ainda o título. Para fazer partos, você precisa ser obstetra, mas para atender atenção primária, "qualquer um serve". Faltam profissionais, a grande parte da população não os conhece, e mesmo uma boa parte da classe médica os desconhece, ou faz questão de evitar.
E é claro que muitos interesses permeiam esta relação:
- o interesse coorporativo de sociedadades de especialistas que não desejam ver seus pacientes atendidos por um médico de família;
- interesse de empresas de exames que não querem ver seus lucros reduzidos pelo questionamento de
diretrizes não baseadas em evidências;
- interesse da indústria farmacêutica e suas relações com sociedades de especialidades/ hospitais/ farmácias, para quem um médico baseado em evidências e centrado no paciente será menos intervencionistas, e menos lucrativo;
- medo de uma indústria da doença, para quem a prevenção não interessa;
- receio de um grande sistema suplementar que não deseja perder mercado para uma medicina humanista e pouco baseada em tecnologia.
5) Para resumir:
- Medicina é cara, e o custo aumentará sempre.
- Medicina é saco sem fundo, não há investimento que resolva 100% dos problemas de saúde.
- Medicina é arte e humanismo, mas o mercado não deixa isto se dar da melhor maneira.
- Há algumas soluções para reduzir o custo e melhorar a relação médico-paciente.
- Mas estas soluções desagradam muita gente.
6) E o que será dos planos de saúde e de seus usuários daqui por diante?
Não há respostas, e sim dúvidas. Algumas perguntas são:
1) Qual mecanismo irá obrigar
um pediatra ou clínico,
que já ganha um valor irrisório, com taxas de "glosas" (nome técnico para quando o convênio "dá o cano" no profissional), a abrir horários na agenda para salvar os planos de saúde de multas?
2) Os convênios pagarão o valor de uma consulta particular a estes profissionais? Ou reembolsarão os usuários de planos de saúde que pagam a consulta particular? Neste caso, não seria melhor descredenciar todo mundo e pagar a consulta particular e deixar somente exames e internações por conta dos convênios?
3) Os convênios, cooperativas e grupos tem alguma previsão de trabalhar com racionalização de recursos, ou continuarão a fazer o pêndulo, aviltando o médico e cobrando mais do usuário?
4) Os planos de saúde sobreviverão ao crescimento e consolidação do SUS?
5) Será uma lei que "não vai pegar"? Ou estamos fadados a ver o fim da saúde suplementar, que desde a década de 70 é acusada pelas coorporações de explorar a classe médica?
6) E,
para os usuários de planos de saúde: porque não pagar por uma consulta particular, que custa o mesmo que uma boa ida ao cabelereiro, ou ao preço de um conserto de privada na sua casa, e deixar o plano de saúde para os gastos com exames e hospitais? Porque trocar um profissional que te conhece por um pronto-socorro lotado com uma consulta expressa, impessoal e pouco resolutiva?
(
Racionalmente: Uma consulta particular em pediatra custa R$150,00, e os controles a partir do segundo ano podem ser semestrais. Você terá um profissional a sua disposição, com número de celular, e agenda tranquila, quando for necessário. Quanto você gastou com cabelereiros em 2010?)
Por fim, não podemos deixar de dizer: pobre classe média, que não tem direito a um médico de família... passará ainda uns bons anos a mercê da iatrogenia e da impessoalidade da relação médico-paciente.