domingo, 26 de abril de 2015

A Escala de Vulnerabilidade Familiar de Coelho Savassi e o eSUS/ SIS-AB

Entenda:


No ano de 2002 Coelho, FLG apresentou no 1o Congresso Mineiro de Medicina de Família e Comunidade a "Escala de Risco Familiar", então aplicada no município de Contagem-MG. Nos anos seguintes algumas equipes de saúde da família passaram a aplicar a escala em suas unidades e apresentar resultados interessantes. 

No ano de 2004 foi publicado na Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade o artigo que serviu de base para a produção de muito conhecimento neste sentido. O instrumento se utiliza de sentinelas presentes na Ficha A do SIAB, preenchida pelo Agente Comunitário de Saúde (ACS) na primeira visita à cada família. 

A escala dá sentido ao trabalho do ACS que deixa de preencher um instrumento meramente burocrático, e torna útil e vivo o cadastro familiar, antes mera coleta de dados que era levada para o nível central para digitação, agora um instrumento relevante no planejamento das equipes de saúde. 

Ao longo dos dez anos desde a publicação do artigo, enormes contribuições surgiram por parte de serviços de saúde e da academia, na tentativa de qualificar ou validar o instrumento na prática cotidiana. 

No ano de 2012 os autores da escala de risco familiar de Coelho e Savassi (ERF-CS) produziram um segundo artigo, publicado no JMPHC que definia e clarificava as sentinelas da escala, produzindo melhor entendimento do preenchimento e resolvendo algumas dúvidas comuns a todos que a preenchiam. 


O que já se sabe sobre a ERF-CS

A revisão da literatura aponta que a escala é um instrumento muito relevante nos seguintes âmbitos:

Como elemento motivador de visitas domiciliares "meio", que visam abordar famílias em situação de risco/ vulnerabilidade em seu domicílio. 

No planejamento de ações pela equipe de saúde, priorizando famílias mais vulneráveis no processo de cuidado (e não apenas na visita).

Como organizadora do processo de trabalho da enfermagem, favorecendo a organização da assistência e a elaboração de ações programáticas.

Como instrumento de organização da clientela para assistência em saúde bucal, tendo se mostrado inclusive um instrumento validado para priorizar famílias (famílias de risco tem 2 vezes mais chances de ter a doença cárie com necessidade de tratamento)

Como ferramenta de ensino de graduação, por demonstrar aos alunos a interrelação entre fatores de risco/ vulnerabilidade e desconstruir o raciocínio linear de causa-efeito/ agente-doença, apontando a própria determinação social da saúde.

Como instrumento de priorização de famílias pelo setor educação, propiciando a professores do ensino médio uma forma de selecionar famílias que demandem maiores investimentos.

Nestes dez anos, outras contribuições relevantes no sentido de inclusão de novas sentinelas foram apresentadas, caso do "Critério IFES" e de algumas iniciativas em São Paulo, Rio de Janeiro e no Mato Grosso do Sul. Em todas elas o limite foi a inclusão de sentinelas que não estavam na ficha A do SIAB, o que anularia a sua maior praticidade, que era a não necessidade de coleta de dados no campo.

Com a substituição do SIAB pelo SIS-AB, esta situação muda de figura e novas sentinelas podem passar a fazer parte da escala. 


O que há de novo no SIS-AB

A maior modificação na "evolução" do novo sistema de informação refere-se a separação das fichas de cadastro "domiciliar" e cadastro "individual". Com isto, os dados que ficavam em uma única ficha agora passam a ser arquivados individualmente, e os dados individuais não estão mais disponíveis dentro de um núcleo familiar. 

Além disto, o SIS-AB apresenta um cadastro que não mais é familiar, mas sim domiciliar, podendo haver o registro de mais de uma família na mesma ficha domiciliar, e não mais uma ficha "da família". O resultado disto é que os dados da ficha agora se referem ao domicílio, havendo famílias que vivem naquele domicílio com as mesmas sentinelas de risco.

A ficha domiciliar passa a registrar de maneira mais completa a situação do domicílio, incluindo se urbano ou rural, a posse do domicílio (de próprio ou alugado até situação de rua), outras características domiciliares e a presença de animais. As sentinelas já existentes no SIAB persistem inalteradas, mas as opções de marcação de cada sentinela se ampliaram para incluir outros cenários. 

Outro ponto relevante do SIS-AB é que o cadastro de problemas de saúde no nível individual, por contar com ficha própria, se ampliou e ultrapassa as doenças "programáticas" que eram previstas no SIAB, tais como HAS, DM2, HAN, TB, EPI, ALC (siglas que o ACS preenchia), passando a incluir problemas respiratórios, problemas renais, e espaço específico para o preenchimento de outras. 


O que muda portanto na ERF-CS?

Em linhas gerais, o novo SIS-AB não impede que se aplique a ERF-CS para estratificar a vulnerabilidade familiar. No entanto as informações estão dissociadas, tornando mais complexa a coleta de dados, que deixa de estar em um banco único de dados/ de informações, para estar em dois cadastros diferentes (o domiciliar e o individual).

Será também mais complexo vincular cada indivíduo ao domicílio, pois será necessário a consulta ao cadastro domiciliar para encontrar fichas individuais e o número total de pessoas de cada família na ficha deve estar constantemente atualizado, e o simples número de pessoas daquela família não vincula automaticamente ao número da ficha de cada pessoa. Portanto, "achar" todos os indivíduos da família de maneira mais fácil ou difícil dependerá da maneira como cada equipe arquiva os dados individuais, se individualmente ou coletivamente. 

Mas nem tudo são espinhos. o SIS-AB resolve algumas questões colocadas por autores que encontraram sentinelas relevantes e propuseram mudanças para aprimorar a escala. 

Uma delas refere-se a registrar condições crônicas em geral, ao invés de apenas aquelas apontadas na ERF-CS. Na verdade, as doenças sentinelas da escala foram escolhidas por serem registradas pelos ACS na ficha A, através de códigos, mas também pela relevância assistencial de doenças que são programáticas e portanto ocupam espaço relevante na agenda das equipes. 

Avança ainda no sentido de proporcionar novas sentinelas de risco, como por exemplo se há várias famílias dentro de um mesmo domicílio, que nos parece um dado muito relevante, refletindo um processo de "aglomerização" (a compartimentação de terrenos e casas para abrigar famílias traduzido na nossa prática por domicílios numerados como 2012-A, 2012-B, 2012-C, 2012-D, 2012-E, 2012-F, etc...

O próprio avanço na caracterização do domicílio é capaz de produzir novas sentinelas, relacionadas a posse, localização, tipo de acesso ao domicílio e portanto, ampliar a possibilidade de uma melhor classificação dos riscos sociais, tornando a escala mais específica. 

Assim, verifica-se um cenário rico tanto para acolher as observações dos grupos que estudaram e procuraram validar a escala, quanto para propor as mudanças necessárias para uma "ERF-CS 2.0", que aproveite melhor as sentinelas do SIS-AB. 

E fico aliviado de perceber que o SIS-AB, no meu ponto de vista, não inviabilizar a escala com as sentinelas atualmente vigentes. 


Saiba Mais

Veja a palestra dada sobre a ERF-CS em Cascavel-PR que apresenta um pouco da revisão integrativa realizada sobre a escala e traz uma análise inicial do e-SUS/ SIS-AB:

SAVASSI, LCM. Produção de cuidado na ESF: Estratificação da Vulnerabilidade familiar. In: II Simpósio de Atenção Domiciliar e Estratégia Saúde da Família. Cascavel, PR. [24/04/2013] [Palestra][online] [disponível em https://sites.google.com/site/leosavassi/] [acesso em ##/##/20##]




Acesse os artigos originais:

1. COELHO, F. L. G. ; SAVASSI, L. C. M. Aplicação da Escala de Risco Familiar como instrumento de priorização das visitas domiciliares. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, Brasil, v. 1, n. 2, p. 19-26, 2004. Disponível em http://www.rbmfc.org.br/index.php/rbmfc/issue/view/2



2. SAVASSI, LCM, LAGE, JL; COELHO, FLG. SISTEMATIZAÇÃO DE INSTRUMENTO DE ESTRATIFICAÇÃO DE RISCO FAMILIAR: A ESCALA DE RISCO FAMILIAR DE COELHO-SAVASSI JMPHC - ISSN 2179 - 6750. v. 3, n. 2 (2012). Disponível em http://www.jmphc.com/ojs/index.php/01/article/view/66/61

Publicado originalmente por Leonardo C M Savassi em http://medicinadefamiliabr.blogspot.com

quinta-feira, 2 de abril de 2015

ADA recomenda padrões de tratamento - Diabetes Care


Standards of Medical Care in Diabetes—2015


Entenda:

Diabetes pode ser considerada uma doença ou um fator de risco para outras doenças. Independente da maneira como seja vista, é uma situação complexa, crônica, que demanda cuidados continuados visando a redução de riscos multifatoriais muito além do simples controle glicêmico. Ações de educação em saúde, autogestão do cuidado pelo paciente, e suporte contínuos são fundamentais para prevenir complicações agudas e complicações de longo prazo. 


Os Standards of Medical Care in Diabetes (padrões de cuidados médicos em Diabetes) da Associação Americana de Diabetes do (ADA) foram criados para enfatizar  os componentes de cuidado com o diabetes, os objetivos gerais de tratamento, além de ferramentas para avaliar a qualidade do atendimento a todos os atores envolvidos neste processe, incluindo os próprios pacientes. São uma declaração de posicionamentos da ADA que fornecem as principais recomendações para a prática clínica, a partir de uma extensa pesquisa bibliográfica e atualização anual com base na qualidade de novas evidências.

As Normas de recomendações de cuidados não substituem, obviamente, o julgamento clínico e devem ser aplicadas no contexto de um atendimento clínico de excelência, de acordo com preferências individuais, comorbidades, e outros fatores do paciente. As recomendações incluem triagem, diagnóstico e ações terapêuticas que são conhecidos ou que se acredita influenciar favoravelmente os resultados da saúde de pacientes com diabetes. Muitas destas intervenções têm também mostrado ser eficazes em termos de custos.

Existe evidência significativa para todas as intervenções apresentadas mas sempre é importante lembrar que na Medicina Baseada em Evidências, a validade externa e a individualização da conduta para cada caso são fundamentais, pois grandes estudos afastam comorbidades para ter pacientes praticamente in vitro em suas análises. Ao cuidar de pessoas com diabetes in vivo, os Médicos de Família e Comunidade (MFC) e demais médicos que atuam na Atenção Primária precisam adequar as metas e tratamentos de açúcar no sangue para o paciente individualmente.

Estas novas recomendações da ADA ajudam a individualizar melhor os protocolos de cuidados, levando em consideração mais fatores na tomada de decisões. Uma das mais importantes diretrizes da ADA é a necessidade de considerar os pacientes como indivíduos e tratamentos sob medida de acordo com elas. Idade, comorbidades, expectativa de vida, bem como a motivação do paciente e suas preferências, precisam ser considerados na escolha de terapias e determinação das metas de açúcar no sangue.



O que estes artigos trazem

A American Diabetes Association lançou um conjunto atualizado de normas baseadas em evidências sobre o rastreio de diabetes e tratamento de pacientes. Além destas, alguns níveis de evidência para várias recomendações foram atualizadas, reforçando algumas recomendações clínicas, que permaneceram as mesmas.


As alterações:
Seção 2. Classificação e diagnóstico de diabetes
O ponto de corte do IMC para a triagem de sobrepeso ou obesidade em descendentes asiáticos para pré-diabetes e diabetes tipo 2 foi alterado para 23 kg/ m2 (vs. 25 kg / m2) para refletir a evidência de que essa população está em um risco aumentado de desenvolver diabetes em níveis mais baixos de IMC em relação à população em geral.

Seção 4. Fundamentos do Cuidado: Educação, Nutrição, Atividade Física, de Cessação do Tabagismo, Atenção Psicossocial, e Imunização

A seção de atividade física foi revisado para refletir evidência de que todos os indivíduos, incluindo aqueles com diabetes, devem ser encorajados a limitar a quantidade de tempo que passam o sedentarismo através da quebra de um longo período de tempo (acima de 90 minutos) gasto sentado.

Devido ao aumento do uso de cigarros eletrônicos (e-cigarros), as Normas foram atualizados para deixar claro que os e-cigarros não são suportados como uma alternativa a fumar ou para facilitar a cessação do tabagismo.

Recomendações de imunização foram revistos para refletir recentes Centros de Controle de Doenças e Prevenção orientações sobre vacinação para Pneumococo 13-valente (PCV13) e pneumococo 23-valente (PPSV23) em adultos mais velhos.

Seção 6. metas glicêmicas
A ADA recomenda agora um alvo da glicemia de 80-130 mg / dL, em vez de 70-130 mg / dL, para melhor refletir novos dados comparando os níveis de glicose médios reais com as metas de A1C.

Para fornecer orientações adicionais sobre a implementação bem sucedida de monitorização contínua da glicose (CGM), as Normas incluem novas recomendações sobre a avaliação de prontidão de um paciente para CGM e na prestação de apoio contínuo a CGM.

Seção 7. abordagens para o tratamento glicêmico
O algoritmo de gerenciamento de diabetes tipo 2 foi atualizado para refletir todas as terapias atualmente disponíveis para a gestão de diabetes. Vale a pena ver pois serve de "guia" de tratamento para os pacientes desde a Metformina até a Insulinoterapia. 

Seção 8. Doença Cardiovascular e Gestão de Riscos
A meta recomendada para a pressão arterial diastólica foi alterada de 80 mmHg para 90 mmHg para a maioria das pessoas com diabetes e hipertensão para refletir melhor as evidências de ensaios clínicos randomizados. Metas diastólicas menores ainda podem ser apropriadas para certos indivíduos.

Recomendações para o tratamento com estatinas e monitoramento de lipídios foram revistos após a consideração de 2013 das diretrizes do American College of Cardiology / American Heart Association sobre o tratamento de hipercolesterolemia. O início do tratamento (e dose inicial de estatina) agora é impulsionada principalmente pelo estado de risco, em vez de o nível de colesterol LDL.

Com consideração para as novas recomendações de tratamento com estatinas, as Normas agora fornecem a seguinte orientação de monitoramento lipídico: um perfil lipídico de triagem é razoável no momento do diagnóstico do diabetes, a uma avaliação médica inicial e/ ou na idade de 40 anos, e depois periodicamente.

Secção 9. complicações microvasculares e Cuidados com os pés
Para orientar melhor aqueles com alto risco de complicações do pé, as Normas enfatizam que todos os pacientes com pés insensíveis, deformidades nos pés, ou uma história de úlceras nos pés tenham seus pés examinados a cada consulta.

Seção 11. Crianças e Adolescentes
Para refletir novas evidências sobre os riscos e benefícios do controle glicêmico rígido em crianças e adolescentes com diabetes, as Normas agora recomendam uma HbA1C alvo de < 7

Seção 12. Gestão da Diabetes na Gravidez
Esta nova seção foi adicionada às Normas para fornecer recomendações relacionadas à gravidez e diabetes, incluindo recomendações sobre o aconselhamento pré-concepção, medicamentos, as metas de glicose no sangue, e monitoramento.


Um artigo recente escrito por Médicos de Família sublinha alguns pontos em especial para os MFC:

A metformina é quase sempre o primeiro medicamento de escolha em pacientes com diabetes tipo 2. Mas se a metformina não conseguir controlar a glicemia, nem sempre é clara qual é a melhor escolha de uma segunda droga. Estudos em andamento ainda tentam responder a essa pergunta.

Outro ponto é que as evidências reforçaram que a HbA1C abaixo de 7 ainda é a recomendação geral, a menos em pacientes mais velhos ou tem mais complicações. A boa notícia para muitas pessoas é que há um rol maior de medicamentos que podem ser usados ​​sem causar hipoglicemia, tornando mais fácil para atingir a meta da HbA1C

As recomendações da ADA apontam ainda que os descendentes asiáticos começam a desenvolver diabetes com pesos menores, ou seja, que o sobrepeso e obesidade não são "one-size-fits-all" e que para estas pessoas, um índice de massa corporal (IMC) de 23 está acima do peso ideal. Descendentes de asiáticos têm um maior risco de diabetes com peso menor é porque a sua gordura tende a depositar em torno de seus órgãos internos - conhecido como a gordura visceral - elevando o risco de resistência à insulina, um precursor da diabetes tipo 2. Por esta razão, a ADA recomenda que tipo 2 diabetes triagem em asiático-americanos deve começar quando seu IMC é de 23 ou superior, em vez de 25.

Por fim, o artigo dos MFC destacou o risco de doença cardíaca: Pessoas com qualquer diabetes (tipo 1 e tipo 2) têm um risco significativamente maior de desenvolver doenças cardíacas e a ADA recomendou o início do uso de estatinas em diabéticos acima de 40 anos, mesmo sem o colesterol elevado. Ou, seja, a visão é que se existe diabetes, existe risco cardiovascular. E se existe diabetes em pessoas entre 40 e 75 anos, existe a indicação formal de uma estatina.


Concluindo: 

O maior desafio no tratamento de pessoas com diabetes tipo 2 é o acúmulo de fatores de risco ao longo dos anos (as pessoas em geral vêm de uma a duas décadas de vida pouco saudável). A partir das diretrizes, fica mais fácil descobrir quais os medicamentos indicar, mas o desafio continua sendo cuidar de uma condição crônica, com foco na mudança de comportamento. 

Com as diretrizes, a ADA consegue dar um passo maior rumo a individualização do tratamento, o que de forma alguma substitui o juízo criterioso de cada caso e a decisão compartilhada. Quem é Médico de Família já sabe:

1) Método clínico Centrado na Pessoa;
2) Educação em saúde com foco na mudança de comportamento; e
3) Entender as crenças do paciente para saber qual o ponto a se abordar. 


Leia ainda:
Recomendações da ADA para abordagem de crianças com DM1.
P4: Diabetes frequentemente sobretratada em idosos
Medicina de Familia: Terapia Oral para DM-2 (recomendações baseadas em evidência) 
P4: Metformina para prevenção de Diabetes


Acesse:

Acesso ao suplemento da ADA e todos os seus capítulos:


Acesso em especial aos artigos da ADA de maior destaque:

http://care.diabetesjournals.org/content/38/Supplement_1/S3.full
http://care.diabetesjournals.org/content/38/Supplement_1/S4.full


Publicado originalmente por Leonardo C M Savassi em http://medicinadefamiliabr.blogspot.com